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JÁ NADA É DOURADO COMO SEMPRE QUIS

Bordado de algodão sobre linho, borlas em algodão
136x38 cm

2020

       Ceifei! Ceifei amor!
    O campo já não é dourado, as espigas foram-se e agora tudo está castanho, sujo. Já não é o mesmo. Ceifei ininterruptamente todo o terreno que outrora, num amanhecer frio, branco e de névoa, eu correra pra te procurar. Aqui, no trigo amarelo e forte, enquanto o sol subia lentamente, o barulho ensurdecedor dos bicos amarelo alaranjado dos melros acordava-me da noite não dormida. Eles não sabem que são o prazer do meu dia. Eles não sabem que não te tenho. Eles não sabem que te amo. São alegres por isso, imagino-os assim, observando os saltos de espiga em espiga. Mais vale ser inocente, crer que o mundo lá fora tem ânimo. Cá dentro, no meu quarto, enrolado no meu lençol branco, o ar é negro como as penas do pássaro.
     Ceifei! Ceifei amor!
     O campo é agora uma cama de incalculáveis espetos, pequenos e insignificantes. Os meus pés correm sobre as sementes caídas, já não os sinto, mas também não te sinto e isso inquieta-me mais. O campo tem mil espetos e todos eles cravam na minha pele, tão suavemente que parece o teu amor. Sabe tão bem. Alfinetes que espetas no meu corpo, espinhos no coração para que não te sinta. Já não passo destas feridas, do sangue seco junto aos pêlos, da dor de arrancar a crosta. Sabe tão bem. Magoa-me amor! Já não corro mais, não consigo. Deito aqui, onde em tempos melros se alegraram, choro a ausência do que nunca tive. Já nada é dourado como sempre quis, já nada é como sempre quis.
     Ceifei! Ceifei-te amor!

    O meu trabalho sou eu e está representado por um corpo-presente ausente, e partindo deste princípio, senti a necessidade de criar um trabalho onde expresse o fracasso da minha relação. Nele mostro que consumi todo o amor e não restou nada, exceto as memórias, onde “já nada é dourado como sempre quis”. Colho todo o amor que resta, e mesmo que fiquem sementes ou se tente replantar, os melros acabam por aniquilar essa possibilidade. O campo continua fértil mas as sementes já não rebentam. Deste campo apenas restam os espetos das espigas, que me magoam ao correr sobre ele, ao sair dele. Uma relação tem os seus problemas e encará-los é a parte mais complicada, é magoar-nos a nós acima de magoar o outro.

     O alforge é um elemento muito característico do sul do país, geralmente usado por homens e carregado ao ombro, tendo as bolsas junto ao peito e às costas, é como uma segunda camada que abraça o corpo, é próximo à pele.

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