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ALÉM

  Projeto Artes Plásticas Escultura

  Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

2019 | 2020

  Têxteis ; Tradição ; Lugar ; Relação ; Família ; Processo; Deslocação

 Qual o sentido da Escultura enquanto disciplina? É possível expressar memórias, intenções, desejos através de objetos que habitam num espaço? Se durante o ano anterior procurei encontrar as raízes na minha família e nas memórias, este ano, procuro encontrar o meu local e o meu futuro. Na minha prática é evidente a força da tradição e das matérias populares, como resposta à problemática que coloco. Muita desta inspiração provém de artistas portugueses, quer seja na música como José Afonso ou Pedro Barroso, quer seja na literatura como Fernando Pessoa ou Herberto Hélder. Contudo, em Estou Além de António Variações encontro a melhor forma de descrever a intenção do projeto a desenvolver:

 

«Tenho pressa de sair

Quero sentir ao chegar

Vontade de partir

P'ra outro lugar

Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar.» [1]

 

  Procurei, através dos Têxteis e da Escultura, encontrar a cultura de uma terra que não é minha, as minhas raízes, o meu futuro. Criei a ideia de uma narrativa que é vivida no processo de deslocação para além. Aqui no Norte, deixo tudo para trás, a minha família, a relação amorosa, a minha casa. É a ideia de adotar uma realidade que não me pertence, mas que pretendo que seja minha.

   

 

[1] VARIAÇÕES, António, Estou Além, in Anjo da Guarda, Edições Valentim de Carvalho, Lisboa, 1983

 a·lém 

   a·lém |à|
   (talvez do latim ad illinc, dali ou ecce hinc, eis ali)

 

   advérbio

   1. Mais longe que, mais para lá de.

   2. Em lugar afastado de quem fala e de quem ouve. = ACOLÁ, ALI ≠ AQUI, CÁ

   3. Da parte de lá de. ≠ AQUÉM

   4. Longe.

   5. Para mais, em valor ou quantidade.

   6. Para o lado de fora. = AFORA

   nome masculino

   7. A vida depois da morte; a outra vida. = ALÉM-MUNDO, ALÉM-TÚMULO

   8. Local afastado.

 

   Além, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/alem (consultado a 15/06/2020)

     No ano passado, explorei de onde vim, do que sou feito, as memórias e as relações, a ligação com as mulheres da minha família (que me passaram a tradição dos têxteis), a ideia de manter objetos que fizeram parte de um passado. Preservar a origem e a herança. Acredito que a família, as pessoas e a cultura são a nossa terra, o local onde nascemos e crescemos é a nossa terra. Por mais importante e participativo que seja no quotidiano, o nosso local, por ser nosso, por ser vivido constantemente, incute-nos uma rotina, um desgaste diário. A exaustão de viver num local, leva-nos à procura de outro, tal como um nómada.

    A minha intenção este ano foi desenvolver um projeto que me permitisse explorar a ideia da procura de um lugar, uma terra. A ideia de mudança, quando tomada durante uma relação, implica várias decisões que não dependem totalmente de mim, implica espera, ritmo e cedência. Tendo como base esta ideia de deslocação e adoção de uma cultura que não é a minha, tirando partido da escrita enquanto matéria da imaginação, pretendi desenvolver ao longo do ano projetos que me transportassem para o outro local, que traduzissem esta ideia de mudança, de processo, bem como a ideia da espera e demora, o passar do tempo. Decidi intitular este projeto de Além, uma vez que me transporto para um lugar distante, além do Tejo. É para lá do que vivi, para lá do que sou e de onde sou. Quis criar uma narrativa ao longo do ano que contasse a eventual mudança e o que fui perdendo ao longo do percurso. Se de um lado tenho o que fui, do outro quero ter o que serei. Impossível, evidentemente, definir um destino que terá sempre obstáculos e caminhos diferentes.

   Ao longo do ano, criei uma narrativa com três trabalhos, onde projeto a minha mudança para o Alentejo. Em todos eles recorri ao têxtil e a algumas práticas inerentes a este para concretizar as minhas ideias. No primeiro trabalho relaciono a minha origem (família) com uma prática tradicional alentejana, incluindo a noção da espera e da longa duração. No segundo, represento as memórias e as vivências que tive no Norte e que quero levar comigo, porque me ensinaram a crescer e mudar. No terceiro concluo com a ceifa de todo o amor que tinha e que deixei para trás, e uso o campo vazio como o medo que pode vir a ser esta mudança, que pode não dar colheita e ser em vão.

     Neste projeto recorri aos têxteis, e essencialmente ao bordado, por serem uma prática muito recorrente na minha família há quatro gerações. Para mim faz todo o sentido recorrer às minhas raízes para representar o que sou e o que quero ser. Contudo, esta é uma matéria muito relacionada ao artesanato e portanto torna-se complicado entender a distinção entre artesanato e arte. A verdade é que a partir do momento em que os meus trabalhos me representam, possuem um significado, um sentimento ou um conceito, entram no contexto da arte. O artesanato, por outro lado, geralmente refere-se a peças onde o valor maior reside na técnica e habilidade de produzir, e tem também por norma uma função, quer seja decorativa, quer seja prática. Ou seja, a arte é o reflexo do pensamento e o artesanato é o reflexo da habilidade. Toda a arte tem um pouco de artesanato, e todo o artesanato tem um pouco de arte. Ambos têm o seu valor próprio e ambos são válidos, não podendo desprezar. Ambos exigem um público que os admire e que seja capaz de entender as emoções ou as percepções que transmitem.

    O meu projeto e as técnicas a que recorro para o conceber estão aparentemente no limiar entre artesanato e arte, mas, após uma cuidada análise percebemos que estão totalmente dentro da esfera da arte. O meu trabalho está carregado de simbolismo e conceito, o meu trabalho parte das minhas emoções e experiências, e não tem qualquer intuito de ser funcional. Nunca usaria o meu tapete de Arraiolos como adorno, nem usaria o nosso lençol na cama, nem tampouco carregaria as compras no meu alforge. As minhas peças são documentais e matéria de expressão e comunicação.

      Entendo o meu trabalho além do que aparenta ser.

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